A adoção da arbitragem no setor de infraestrutura tem se tornando quase uma regra, em especial em projetos de concessão de serviços públicos. E é bom que seja assim. Esses projetos têm como principais caraterísticas o longo prazo de duração dos contratos, a necessidade de manutenção do equilíbrio econômico-financeiro no tempo e o financiamento via tarifas cobradas dos usuários, definidas por uma agência reguladora independente, nos termos previstos em contrato. Portanto, bem calibrado, o uso da arbitragem tem se mostrado uma ótima medida, possibilitando a resolução de litígios financeiros em um ambiente mais flexível, célere e técnico. É o que tem se observado, por exemplo, no setor de rodovias com a experiência da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT).
Desde a edição do novo marco legal do saneamento básico, o Brasil tem vivido um boom de projetos nessa área, quase todos modelados pelo BNDES e com convenção de arbitragem como remédio para disputas que envolvam direitos patrimoniais disponíveis. Mas, como todo remédio, se aplicado na dose errada, pode virar veneno.
Essa semana, um único árbitro indicado pela presidência de uma câmara arbitral, em rito sumaríssimo, retirou dos cofres do Estado do Rio de Janeiro R$ 828 milhões da outorga que deveria ser paga por uma das concessionárias de saneamento. Determinou que tais valores ficassem depositados à disposição do juízo arbitral. Fez isso sem conhecer dos argumentos apresentados pelo Estado, entre vários, a sua situação financeira delicada: em regime de recuperação fiscal desde 2017 e com déficit orçamentário de R$ 14,6 bilhões para 2025. Ao contrário, sem corar, justificou que os danos à coletividade em ver suprimido da sua previsão orçamentária um valor de mais de R$ 800 milhões eram abstratos e não concretos. Por outro lado, considerou concretos e verossímeis os números produzidos unilateralmente pela concessionária e, também, o argumento infame de que, afora a outorga, a única forma de se reequilibrar um contrato de concessão de 35 anos, que entra agora apenas em seu a quarto ano de execução, é a via do precatório judicial.
Pior: o árbitro fez isso se declarando competente para a matéria, ignorando regra expressa do Decreto Estadual nº 46.245/2018, presente na cláusula arbitral, que determina que as cautelares e tutelas de urgência prévias à instauração da arbitragem ordinária são de competência do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Mas não para por aí.
A suspensão parcial do pagamento da outorga já havia sido tentada junto à Agência Reguladora de Energia e Saneamento Básico do Estado do Rio de Janeiro (Agenersa) e negada por seu conselho-diretor, responsável pela regulação independente do setor. O contrato determina que cabe à agência deliberar se a excepcionalíssima hipótese de suspensão da outorga como forma de reequilíbrio cautelar deve prevalecer em detrimento das outras 11 medidas de reequilíbrio previstas expressamente em contrato, o que inclui a indenização direta e sem precatório pelo Estado. Ainda assim, o árbitro ignorou o contrato, expandiu sua atribuição e substituiu o juízo discricionário da agência, determinando que os R$ 828 milhões permaneçam depositados, talvez até o fim da arbitragem, que pode demorar alguns anos. Em termos mais diretos, o árbitro fez o que nem mesmo o Judiciário pode fazer: refez uma escolha legítima da Administração, revendo o mérito administrativo de um ato regulatório.
A regulação independente ainda é alvo de todo tipo de ataque no Brasil. A luta para a sua consolidação é constante. No setor de saneamento, recente norma de referência da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) sobre governança contribuiu positivamente para o debate. Mas as tentativas de promover retrocessos ainda são muitas. Um risco que talvez poucos enxerguem atualmente é o da usurpação da atividade regulatória por árbitros privados a partir de um ativismo arbitral, como ocorrido na semana passada.
Segundo a teoria de George Stigler que trata a regulação como commodity, idealmente os regulados gostariam de ter uma regulação para chamar de sua, o que pode ocorrer em tempos de irracionalidade política. O perigo aqui é que uma irracionalidade jurídica, como esse avanço de decisões arbitrais sobre o mérito regulatório, acabe por produzir o mesmo efeito, ignorando a Constituição, lei e o contrato, para criar uma regulação paralela por meio de árbitros privados.
*Marcus Vinicius Barbosa é procurador-geral da Agenersa e procurador do Estado do Rio de Janeiro
Publicado originalmente em: www.oglobo.globo.com/blogs/fumus-boni-iuris/post/2025/02/artigo-ativismo-arbitral-concessao-de-servicos-publicos-e-regulacao-o-ovo-da-serpente.ghtml